Contém pequenos spoilers de Celeste, Narita Boy e Red Dead Redemption 2. Fiz o possível para evitar tocar em pontos maiores da trama, no entanto.
Algumas obras têm o poder de transmitir uma ampla compreensão subjetiva de uma verdade fundamental. É muito mais que um sentimento objetivo, é uma sensação complexa; não é exatamente alegria, tristeza, euforia, diversão, raiva ou medo. Talvez seja tudo isso junto, mas ainda algo mais. É difícil explicar para outras pessoas o que sentimos quando somos tocados por essas obras. Isso acontece porque a sensação é na verdade uma experiência, e como experiência, precisa ser vivida; não dá pra explicar o que sentimos de outra forma, e quando tentamos, os detalhes saem meio… desbotados. É como se tentássemos pintar um quadro com palavras, mas todas as tintas são pálidas.
Quando pensamos em videogames, a associação mais recorrente entre mídias é o cinema. É fato confesso que algumas produtoras caminham intimamente próximas de narrativas cinematográficas quando criam jogos novos, mas essa não é a única forma de se construir uma história. O videogame consegue, com certa facilidade, fazer com que seu público chegue num estado que geralmente um filme de duas horas precisa de muito esforço: a compreensão do contexto total de um personagem.
No videogame, nós acompanhamos não só os momentos de virada da trama, ou trechos relevantes que geralmente são valorizados por cortes escolhidos em uma ilha de edição, mas também detalhes pequenos, tediosos ou confusos, como quando ficamos por horas travados em alguma tela sem conseguir decifrar o que é para ser feito no jogo, ou quando esquecemos de pausar e largamos o controle para checar as notificações do celular, e retornamos para descobrir o personagem fazendo alguma ação ociosa, olhando os próprios pés ou tirando um cochilo. Nesse momento, reparamos que aquela história só existe se nós existirmos, e um pouco da vida do personagem é também nossa.
Num jogo de videogame, não existem edições. Você precisará cair no buraco. Seu personagem irá morrer inúmeras vezes por desatenção. Você escolherá a opção errada no diálogo e ficará tentado a dar reset. Não existem cortes, erros de continuismo, escolha do take favorito. Você controla a câmera, e até certo ponto, o próprio ritmo do jogo. E por não ser uma mídia de cenas idealizadas como o cinema, por você ter de lidar com erros, derrotas e frustrações, o videogame tem uma força incomparável ao contar histórias de redenção.
A trama de Celeste funciona como uma constante parábola onde as telas são analogias de angústias humanas, os obstáculos são muitas vezes representações de tormentos emocionais, e os personagens secundários são memórias e anseios da própria protagonista, uma mulher jovem chamada Madeline.
No começo do jogo, tudo o que sabemos sobre Madeline é que ela está em fuga. Deixou para trás uma história traumática na cidade, e resolveu, como forma de superar essas experiências, escalar a montanha cujo nome ilustra o título do jogo. Para atingir o topo, numa analogia do estado de paz interior que tanto busca, precisará enfrentar a si mesma, vez após outra. Algumas vezes sua sombra tentará sabotar a escalada, em outros momentos, ela tentará destruir sua contraparte sombria. Essa perseguição só é resolvida momentos antes dela atingir seu objetivo. E isso, definitivamente, diz muito sobre a condição humana.
Já em Narita Boy, temos outra experiência. A narrativa rápida, afiada, lembra a leitura de uma HQ. Somos um menino transportado para um mundo virtual que está sob risco de destruição por uma entidade maligna, uma espécie de programa corrompido que ameaça todo o sistema operacional do que parece ser, ao mesmo tempo, um reino de fantasia e um jogo de videogame, programado por uma entidade chamada Criador.
Para avançar na história, precisamos recolher disquetes com as lembranças pessoais dessa figura, um homem de meia idade com um semblante constantemente triste; e é aí que a verdadeira narrativa do jogo se desenrola: No pano de fundo do universo do Tricroma, com batalhas luminosas, robôs animorfos e espadas laser, temos a história de um homem real, obcecado e atormentado pelos seus próprios erros. Todos os disquetes com memórias são, na verdade, um fragmento de uma longa carta de um apelo por perdão. Ao trazer de volta a memória do Criador, ele se torna um aliado do personagem principal para derrotar o vilão, e assim ambos são libertos.
Em Red Dead Redemption 2, o título já entrega a experiência. Estamos no controle de Arthur, um fora da lei e braço direito de Dutch Van der Linde, um homem que usa o crime como forma de se opor ao controle civilizatório de um país que está nascendo. Ele e seu bando sonham com o dia que conseguirão fugir definitivamente da sociedade para viverem em constante contato com a natureza, de forma livre, sem opressões. Arthur vê em Dutch um homem sábio, e por isso executa crimes das mais diversas espécies em nome do bando, sempre cercado de paisagens absurdamente deslumbrantes dos Estados Unidos pós guerra civil. E é esse contato direto com a natureza que sensibiliza o protagonista.
Os pequenos prazeres da caça e da pesca, a sensação de cavalgar ao ar livre e o firmamento enorme no céu fazem com que Arthur se encontre apaixonado pela própria vida enquanto morre aos poucos, vítima de uma doença incurável. O destino sombrio é dado na metade do jogo por um médico, e o jogador se vê controlando um homem que luta, desesperadamente, para corrigir todos seus erros antes que seja tarde. Arthur se arrepende da violência em que tratou os outros em sua constante fuga da realidade, e a vida de quem joga se vê entrelaçada com a de um moribundo, em cada delírio de estado febril do personagem. Ele começa a ver mais claramente quem são seus inimigos e aliados um pouco antes do fim, mas “o mundo cruel deve seguir”, como diria Willie Nelson, na música que compõe a trilha sonora do jogo.
A sensação de uma boa história de redenção é difícil de ser justificada, como eu disse. Ela pode se manifestar em uma superação absoluta, como em Celeste, onde todo o conflito acontece dentro da própria personagem e é conquistado por força própria, mesmo diante de lágrimas e sofrimento; pode ser a história de um homem arrependido, como em Narita Boy, onde a narrativa constrói um caminho natural ao perdão; ou mesmo uma profunda sensação de aceitação, de si mesmo e do mundo que o cerca, diante de um destino inexorável e da beleza estonteante de um por do sol laranja em um mundo que continua, como em Red Dead Redemption 2.
Em todos esses casos, vestimos o corpo, e emprestamos a alma para nossos personagens. Por isso que jogar, para mim, é a arte de experimentar a vida.