A vida de um jogador aficionado pela nostalgia não é muito fácil. Inúmeras franquias que foram amadas nos áureos tempos acabaram por cair em desuso e nunca mais apareceram. Atualmente, jogos como Mighty No 9 e Yooka-Laylee foram criados como sucessores espirituais de Mega Man e Banjo-Kazooie, para acalmar um pouco da alma nostálgica. Esses jogos foram criados pelos desenvolvedores dos originais que se desligaram das empresas e foram à luta pelas próprias forças.
Nossa Máquina do Tempo hoje vai voltar bastante tempo. Quando um sucessor espiritual surgiu, não com a ideia de nostalgia, mas com a pretensão de tornar um jogo excelente em algo melhor ainda. Será que conseguiu? Vamos revisitar nada menos que Perfect Dark, para o Nintendo 64.
A Rare aprontando das suas
O jogo Perfect Dark foi desenvolvido pela queridíssima Rare. Quem dirigia o projeto era Martin Hollis, o mesmo que chefiou a criação de Goldeneye 007 (confira aqui). O trabalho em Perfect Dark se iniciou logo após o lançamento do game do James Bond, já que a Rare não tinha interesse em produzir a sequência “O Amanhã Nunca Morre”, pois acreditava que havia gasto muito tempo trabalhando no universo do agente 007. O jogo começou a ser produzido em 1997 e o lançamento aconteceu somente no ano 2000.
A decisão de utilizar uma protagonista mulher partiu do próprio criador, Martin Hollis, acreditando que deveria ter mais jogos com mulheres no papel principal. Já o gênero de ficção científica foi definido pelos desenvolvedores, pois eles tinham muito interesse nesse tipo de jogo e assim tomariam muito mais gosto pela produção. Com essas duas temáticas em vista, eles criaram a nova heroína Joanna Dark, influenciada, também, por várias outras heroínas da ficção. As personagens Kim Kimberly, jogo de computador interativo Snowball, Nikita do seriado de mesmo nome e Dana Scully de Arquivo X são alguns exemplos que foram utilizados como inspiração.
Dentre esses, é possível destacar como maior influência a franquia Ghost in the Shell. Esta franquia começou como um mangá, ambientado em um mundo futurista cyberpunk e acabou virando série, filmes e passou por diversas mídias. Phillip K. Dick, escritor de ficções que tinha preferência por mundo distópicos e seus escritos basearam diversos filmes conhecidos (Vingador do Futuro, Minority Report, Blade Runner), foi outra fonte que Hollis e sua equipe beberam. A ideia de Martin e do designer David Doak era escolher diversos lugares que eles acreditavam que seriam impressionantes e com uma arquitetura no modelo de GoldenEye, mas com estilo de ficção científica distópica. Depois do estilo de cenário ser fixado e a protagonista escolhida, o enredo começou a ser construído para unir essas ideias.
Com as ideias prontas, a produção do jogo teve início. Perfect Dark usou uma versão modificada da engine de GoldenEye 007 e podemos perceber muitas semelhanças no gameplay de ambos os jogos. As alterações foram principalmente na questão gráfica. Melhorias para o jogador ter o seu game em alta resolução, a luz das explosões e dos tiros ficaram mais dinâmicas e é possível destruir as lâmpadas para criar ambientes escuros. Alguns elementos mais sangrentos também foram introduzidos, como o sangue do inimigo que agora manchava as paredes. Além disso, um elemento novo foi adicionado: quando o jogador estava envenenado, levou um soco ou tranquilizante, a tela apresentava lentidão nos movimentos, para que o jogador tivesse a mesma sensação. O áudio do game apresenta melhorias consideráveis, suportando “Dolby Suurround Sound”, acrescentando dublagem completa nas cutscenes do game e diálogo de inimigos durante o gameplay. A inteligência artificial foi implementada, com os inimigos trabalhando em equipe e se comunicando uns com os outros. Além disso, eles podem atirar granadas e utilizar armas secundárias, algo que não existia em 007. Muitas outras ideias foram planejadas, mas a capacidade de hardware do Nintendo 64 impedia, mesmo com a obrigatoriedade do uso do Expansion Pak.
Sci-fi pra ninguém botar defeito
A história de Perfect Dark se passa no ano 2023 e tem como plano de fundo uma guerra interestelar entre duas raças diferentes: os Maians, que são o estereótipo cinza dos aliens e a raça dos Skedar. Os Skedar são uma raça de reptilianos que usam um aparelho holográfico para se parecerem com humanos nórdicos. Usando esses disfarces, eles conseguem interagir com os moradores da Terra sem causar suspeitas. Enquanto esta guerra acontece, no Planeta Terra existe uma rivalidade entre as facções: O Instituto Carrington, um centro de pesquisa e desenvolvimento criado por Daniel Carrington, que opera secretamente um grupo de espionagem com os Maians. Do outro lado estão os dataDyne, uma empresa contratada pelo governo para providenciar material bélico, liderada por Cassandra De Vries e que mantêm um acordo secreto com os Skedar. Este acordo consiste em: a dataDyne cria uma Inteligência Artificial capaz de quebrar os códigos de uma antiga nave espacial que está enterrada no fundo do oceano e em troca, os Skedar concordam em suprir a empresa com qualquer tecnologia alienígena que possa fazer com que eles se tornem a maior corporação da Terra.
O jogador controla Joanna Dark, uma agente do instituto Carrington. Ela possui excelente pontuação nos treinamentos e ganhou o codinome de “Perfect Dark”. Em sua primeira missão, ela é enviada para retirar o cientista Dr. Caroll de um prédio da dataDyne. Ao resgatar o cientista, ela descobre que ele é uma Inteligência Artificial que decidiu desertar da dataDyne após perceber que a companhia quebrou os padrões éticos e morais. Depois da operação, Carrington é capturado e mantido preso em uma vila cercada por soldados da dataDyne, que estão o forçando a revelar onde Dr. Caroll está escondido. Joanna consegue resgatar Carrington, mas este informa que Dr. Caroll foi levado até o quartel general da Corporação G5, em Chicago, pois eles suspeitam que a traição dele fosse só uma fachada.
Em Chicago, Joanna consegue acessar os planos da dataDyne, que estão conspirando para sequestrar o Presidente dos Estados Unidos e, com isso, conseguir acesso a um navio de investigação em altas profundidades chamado Pelagic II. Mesmo com a segurança do Presidente ameaçada, Carrington envia Joanna para um lugar próximo a Área 51, onde uma nave Maian foi abatida, mas pode ter alguns sobreviventes. Ela consegue resgatar o único sobrevivente, o alienígena Elvis, a chave para parar os planos da conspiração. Como o Presidente dos Estados Unidos se negou a entregar o Pelagic II, os conspiradores da dataDyne começaram a planejar algo ainda mais sombrio: assassinar o Presidente e substituir por um clone. Para completar esses planos, uma equipe da Agência de Segurança Nacional (Liderada por Trent Easton), invade a base aérea a partir de um avião comercial. Quando Joanna impede esse ataque, a ASN e alguns Nórdicos tomam conta do avião, que acaba parando de funcionar e entra em colisão.
O clone do Presidente sobrevive ao acidente, mas é eliminado por Joanna. Enquanto a agente resgata o verdadeiro Presidente, Easton é morto por um Nórdico em particular, conhecido como Mr. Blonde, que se revela como um Skedar disfarçado. Sem a permissão do Presidente, a dataDyne decide roubar o navio Pelagic II e alcançar a nave espacial perdida. Entretanto, sem a dataDyne saber, o Instituto Carrington descobre que a nave contém uma arma poderosa capaz de destruir um planeta e que os Skedar estão se disfarçando de humanos Nórdicos com a indeção de testar essa arma na Terra e depois usar no lar dos Maian.
Joanna e Elvis seguem os conspiradores até a antiga nave espacial e encontram Dr. Caroll, agora reprogramado e quebrando os códigos da arma. A agente consegue restaurar a antiga programação do Dr. Carroll, que faz com que a arma se autodestrua. Como forma de vingança por destruir os seus planos, os Skedar lançam um ataque ao Instituto Carrington e sequestram Joanna, para levá-la até o planeta deles.
Lá na espaçonave, ela conhece a Cassandra De Vries, que foi presa por não conseguir cumprir o acordo com a raça alienígena. Se sentindo usada, ela tenta se redimir causando uma distração e se sacrificando para libertar Joanna e dar uma chance de ela se vingar. Com a ajuda de Elvis, ela consegue pousar no planeta Skedar. Já no lar dos alienígenas, ela derrota o Sumo Sacerdote de Skedar e foge do lugar, deixando o planeta em caos. O fim do game mostra Elvis e Joanna deixando o planeta um pouco antes do bombardeio da marinha Maian.
Mas o que eu estou jogando?
Seguindo a base de GoldenEye, Perfect Dark é um jogo de tiro em primeira pessoa. As semelhanças com o predecessor espiritual estão explícitas na jogabilidade. A movimentação do jogador é muito parecida, bem como os sons das armas e dos inimigos. Alguns movimentos foram incrementados, mas é possível perceber a utilização de GoldenEye nesta fita. Existem três níveis de dificuldade separados pelo tipo de agente que você escolhe ser: Agent (nível fácil – poucos objetivos a serem cumpridos e munição de sobra), Special Agent (Nível médio, com mais objetivos) e Perfect Agent (Nível difícil, com inimigos mais fortes e pouca munição). Os jogadores tem a liberdade de se abaixar, esquivar, inclinar e cair em grandes partes das bordas, mas pular ainda é impossível.
Para os jogadores mais inexperientes (ou aqueles que tem dificuldade com o controle do N64) o instituto Carrington pode ser utilizado como uma forma de tutorial e também para treinamento.
Com a variação enorme de cenários e o tema basante diversificado, a necessidade de acrescentar um grande números de armas foi previsto. Por isso, existem diversos tipos de pistolas, rifles, submetralhadoras, shotguns, lança-foguetes, facas de combate, granadas, explosivos e é claro, muitas armas alienígenas. A maioria delas tem a possibilidade de dois modos de tiro: Modo primário, sendo o disparo básico que todos conhecem e o modo secundário, onde o jogador usa arma principalmente para bater no inimigo. É possível carregar armas de forma ilimitada e algumas armas se duplicam, sendo utilizadas em duas mãos. Os objetos do cenário sofrem interação com o jogador ao usar um comando simples. Outra possibilidade que o jogador tem é de desarmar os inimigos e roubar suas armas quando elas caírem. O dano causado nos inimigos depende de onde ele atingir, ou seja, um tiro no peito é mais eficaz que um tiro na perna, por exemplo.
Em cada fase, o jogador deve completar alguns objetivos para sair desse estágio. Os objetivos variam de acordo com o local, indo de recuperação de equipamentos até destruição de certos instrumentos. Cada vez que Joanna morre, o jogador deve recomeçar a fase desde o seu início. À medida que o jogador aumenta a dificuldade do jogo, o sistema de correção da mira (onde a arma “ajeita” o tiro) tem menos eficiência e os itens bônus que concedem escudos e vida não existem. É possível liberar códigos completando as fases em determinados períodos de tempo. Esses códigos também podem ser destravados usando o jogo Perfect Dark de Game Boy Color e usando o Transfer Pak.
Além da excelente campanha, o modo multiplayer de Perfect Dark é um dos maiores atrativos do jogo. O Simulador de combate é aquele multiplayer clássico para jogar com até quatro amigos e oito personagens controlados pela máquina. O Simulador possui seis modalidades de jogo:
Combat – Clássico deathmatch onde o jogador ganha pontos por cada inimigo abatido;
Capture The Case (Capture a mala) – O bom e velho (provavelmente extinto) Capture the Flag que conhecemos dos jogos de FPS. O jogador deve roubar uma maleta na base do inimigo e trazer até a sua própria;
Hold The Briefcase – O objetivo deste modo é encontrar uma maleta escondida e sobreviver o máximo possível. A cada 30 segundos de posse da maleta, o jogador marca um ponto e caso ele morra, a maleta ficará no local até alguém pegá-la novamente.
King of the Hill – Uma área do mapa é escolhida e a cada 20 segundos que o jogador estiver presente neste local, ele marca um ponto. Obviamente ele deve estar sem um inimigo e defender a posição. Depois de pontuar, o local muda para outra parte.
Hacker Central – O jogador deve ir até um local em específico, fazer um uploado no computador e marcar pontos.
Pop a Cap – Um jogador é o alvo. Ele deve ser caçado por todos e cada vez que o inimigo matá-lo, ganha um ponto. O alvo ganhará pontos por cada minuto que se mantiver vivo.
No final das partidas, os resultados finais são apresentados, o desempenho de cada jogador. Dependendo da qualificação os jogadores são condecorados com medalhas, por precisão, maior número de head shots, maior matador e para quem morrer menos. Além disso, o jogo faz algumas piadas, dando títulos de “Praticamente Inofensivo” para aqueles que não conseguiram matar muito.
Além do enfrentamento contra outros jogadores ou inimigos controlados pelo computador, é possível escolher um modo cooperativo para completar as missões. Nele, você joga com mais um amigo em tela dividida, apenas um jogador precisa sobreviver, mas todos os objetivos devem ser completados. Também existe o modo “Counter Operative”, inédito nos games. Nesse modo, um jogador entra na campanha para completar os objetivos com Joanna, enquanto o outro jogador controla algum inimigo e tenta impedir-la. Se o inimigo for morto por Joanna, o outro jogador toma controle de um inimigo vivo que está na fase. O jogo não revela para quem controlar Joanna, qual inimigo que o outro humano está controlando.
O rei dos Easter Eggs
- No simulador de combate, é possível achar um bloco com ponto de interrogação (talvez uma referência à Super Mario);
- É possível modificar o personagem para jogar no modo multiplayer. Inclusive escolher a face de Miyamoto;
- Podemos encontrar um pedaço de queijo em cada missão da campanha;
- A ideia dos queijos era pra criar um grande “Cheat Code”, mas foi retirado na versão final;
- Na segunda missão da campanha, se você completar todos os objetivos e começar a destruir todos as garrafas de vinho, Carrington mandará a seguinte mensagem para você: Act your age Joanna (Aja de acordo com a sua idade, Joanna);
- Antes do lançamento do jogo, os criadores desenvolveram uma característica extra: tirar uma foto com Game Boy Camera e passar o próprio rosto para o jogo. Isso foi cancelado, pois “incentivaria a violência”;
- Para aumentar as vendas do jogo, um slogan promocional dizia que o jogo era “Uma sequência de Goldeneye”;
- Na nave de exploração Pelagic II, muitos guardas estão usando roupas que combinam com o Mario;
- Existe uma estátua da Academia Britânica de artes do Cinema e Televisão escondida em uma das fases;
- Tem uma referência a banda The Pixies na fase Área 51, onde os nomes dos integrantes podem ser ouvidos através de um interfone;
- A data de lançamento do jogo foi adiada duas vezes: a primeira foi o atraso na finalização do jogo e a segunda por que existiam muitos glitches para serem consertados;
- O Expansion Pak é necessário para acessar a campanha do jogo e a maior parte do multiplayer. Aproximadamente 35% do jogo pode ser jogado sem o equipamento;
- Armas e fases são destravadas conforme desafios são quebrados contra robôs no modo multiplayer;
- Existem trinta desafios que podem ser realizados por até quatro jogadores.
Melhor glitch
Nintendo 64: um gerador de mitos
Jogos que são lançados como sucessores espirituais criam grandes expectativas para o seu público-alvo. Em geral, os predecessores fizeram sucesso e os jogadores esperam que venha algo não só do mesmo nível, mas melhor e mais bem construído. Mesmo com uma sombra do passado, as empresas decidem arriscar e acreditar num conceito já existente.
Perfect Dark veio com essa premissa e não deixou a desejar. Mesmo lançado quase no fim do Nintendo 64, o jogo foi muito bem recebido, principalmente pela crítica. A evolução do conceito que vimos em 007 fez muitos olhos brilharem, e suas notas ficaram décimos abaixo do tão desejado 10. Mesmo que consigamos ver GoldenEye em vários cantos e lugares do jogo, percebemos que o jogo não é uma cópia barata. Sentimos a nostalgia do jogo anterior, mas com o gostinho das coisas que queríamos ter visto antes.
Um personagem feminino forte é uma quebra de paradigma nos jogos, ainda mais quando colocado dentro de um jogo de ficção científica. Tínhamos visto isso em Metroid e voltar a encontrar isso é excelente. O enredo do jogo é muito bem elaborado e nos prende em cada missão. Com os gráficos melhorados, temos mais imersão e profundidade no gameplay. Muitas vezes é possível se perder nas fases, pois o jogo lhe dá liberdade para explorar o mapa quando está tentando cumprir todos os objetivos. A trilha sonora e os efeitos de som completam esse ambiente fantástico criado pela Rare.
Muitos jogadores e críticos afirmam que Perfect Dark está entre os melhores jogos de fps da história e com certeza um dos melhores do Nintendo 64. O trabalho dos desenvolvedores foi feito com maestria e aproveitaram muito da capacidade que o console oferecia. Jogar a campanha, comandando Joanna Dark, é extremamente divertido e oferece ao jogador diversas possibilidades de zerar (sendo mais furtivo ou partindo pro ataque). Como um complemento que muitas vezes acaba roubando toda a cena, o multiplayer aparece para aquela jogatina de amigos. Reunir várias pessoas na sua casa para jogar o bom e velho N64 é algo inestimável e faz que a nostalgia de multiplayer local sempre volte. Esse jogo foi um grande achado, tanto para a Rare, quanto para a Nintendo e chegou a servir de inspiração para Splatoon. Se você nunca jogou Perfect Dark, está perdendo tempo, é diversão pra dar e vender.