Numa época em que as mulheres estão lutando muito mais por direitos que há tempos lhe são negados por uma sociedade patriarcal, a representatividade feminina dentro dos jogos de vídeo games anda um pouco morna. Não falo dos números de jogadoras, que, diga-se, vem aumentando cada vez mais. Falo das personagens que outrora se destacavam nos grandes títulos, seja como protagonista ou mesmo como coadjuvante.
Numa sociedade que é dominada por homens há mais de 2000 anos, é evidente que as mulheres são subjugadas e tratadas como inferiores. Grande parte da literatura, em especial a literatura de ficção, tradicionalmente trata a mulher como o sexo frágil, a donzela inocente que precisa de um príncipe encantado para resgatá-la dos perigos etc. Nos filmes a coisa não é muito diferente. Ou melhor dizendo, não era.
Retratadas quase sempre como esposas, namoradas ou donzelas em perigo, foi na década de oitenta que personagens femininas passaram a ter um maior protagonismo, ainda que muito pequeno, no cinema. Filmes como Alien – O Oitavo Passageiro e Nikita trouxeram duas protagonistas muito poderosas. Nesta época, os jogos eletrônicos ainda estavam engatinhando e o protagonista era representado por um homem.
Salvando a Princesinha indefesa
Quando o arcade Donkey Kong foi lançado, o nosso bigodudo e encanador Mario era conhecido como Jumpman. E a sua missão era a de resgatar sua namorada que havia sido raptada por um gorilão gigante. Nada de novo até aqui, certo? Pauline –ou Lady- foi a primeira personagem feminina de vídeo games a ganhar um destaque maior. A fórmula do jogo fez um grande sucesso e pouco tempo depois, a Nintendo apresentou ao público o jogo que faria história e levaria a fórmula Herói-Resgata-Princesa-Sequestrada a um novo patamar: Super Mario Bros. Desta vez, nosso herói ainda precisava resgatar a donzela em perigo, mas ao contrário de quando ainda era o Jumpman, o resgate se passava num reino muito maior do que o edifício em construção do outro jogo. Assim como em Donkey Kong, a única função da personagem -agora a princesa do Reino do Cogumelo- era a de ser resgatada pelo bigodudo.
Logo após o seu primeiro mega sucesso, a Nintendo lançou outro jogo que envolvia uma princesa em perigo: Legend of Zelda. Zelda era a princesa do reino de Hylure que vivia sob a ameaça do vilão Ganondorf. Para proteger seu reino, a princesa solicita a ajuda de Link, um menino-guerreiro. Mais uma vez, um jogo de sucesso tráz em destaque um herói que precisa socorrer uma princesa. Mas a Nintendo iria se redimir disso no seu próximo mega sucesso: Metroid.
Conquistando seu lugar no tiro e na porrada
Metroid chegou ao mercado no mesmo ano de lançamento de Legend of Zelda, mas trazia um grande diferencial: a personagem principal era uma mulher. Samus Aran, a personagem principal do jogo, não nos foi apresentada inicialmente. Só descobriríamos que o herói do jogo era na verdade uma heroína, nos créditos finais e se terminássemos o jogo em menos de uma hora. Em nenhum momento durante a história o jogo indicava que aquela personagem era na verdade uma mulher usando uma Power Suit (a roupa da personagem). No próprio manual do jogo a descrição da personagem insinuava que era um homem e não uma mulher. Apesar disso, e após isso, Samus Aran foi conquistando seu espaço a cada novo jogo da série.
Mesmo com o grande sucesso da série Metroid, era difícil encontrar jogos com mulheres protagonistas. Os homens continuavam dominando o mundo dos heróis e as mulheres continuavam como coadjuvantes. Até que em 1989 a Sega lança para os arcades o jogo Golden Axe. Neste jogo podíamos controlar uma heroína tão importante quanto os outros dois protagonistas, que eram homens: Tyris Flare. Além de Golden Axe, outro jogo chegou trazendo mais uma personagem feminina de destaque na mesmo época.
Assim como Golden Axe, Street of Rage era mais um jogo no estilo beat ‘em up, mas ambientado nos tempos modernos. A personagem Blaze Fielding não devia nada para os personagens homens do jogo e encarava os inimigos com muitas porradas e chutes.
As personagens mulheres estavam ganhando destaque, mas até o momento era algo bem tímido. Isso mudou quando a Capcom lançou Street Fighter II, o jogo de luta que iria revolucionar o mercado.
Chun Li chegou aos vídeo games já arrasando corações. E não somente por causa de suas belas pernas. Apesar de ser fisicamente mais fraca que as outras personagens do jogo, Chun Li se destacava por sua velocidade e por seus chutes poderosos. Street Fighter II foi sucesso absoluto e a chinesa tem grande parcela nisso. O sucesso da lutadora foi tão grande, que praticamente todos os jogos de lutas pós SFII possuía personagens femininas em seus grupos de lutadores.
A chegada da rainha dos gamers
Após o estrondoso sucesso da personagem de Street Fighter II, novos jogos traziam mais personagens femininas com grande destaque. Nenhuma delas chegava perto do sucesso que Chun Li, Blaze ou Samus fizeram. Mai Shiranui, personagem de Fatal Fury, foi a que mais se aproximou das três principais heroínas dos gamers.
Uma das características principais destas personagens, com algumas exceções, era o contexto sexualizado em que elas nos eram apresentadas. Samus usava uma armadura que escondia seu corpo, mas quase todas as outras personagens que vieram depois dela, eram sexualizadas fortemente. Blaze e Tyres usavam trajes minúsculos que valorizavam seus seios, pernas e barriga. Chun Li usava uma espécie de meia-calça que deixava suas pernas muito mais sexy. E Mai Shiranui abusava do decote para deixar os marmanjos babando por seus volumosos seios. Isso era pratica comum nos games e quando a Eidos nos trouxe em 1996 a exploradora de tumbas Lara Croft, não foi muito diferente.
Bonita, atlética, independente, exploradora, forte e rica. Estes são alguns dos adjetivos que são lembrados quando falamos de Lara Croft.
Lara chegou numa época de transição não só de geração, como também numa época em que os gráficos tridimensionais começavam a se destacar. E devido a isso, as personagens passaram a ter uma aparência muito mais semelhante à realidade do que antes.
Mas Lara não passou a reinar sozinha no inicio da era dos polígonos.
Com o advento dos jogos poligonais e todo o poderio gráfico que os consoles de 32 bits traziam, as produtoras puderam trabalhar em jogos maiores e mais cinematográficos. Com isso, a variedade de personagens era muito maior do que nas gerações passadas. Principalmente em relação a personagens femininas. Jill Valentine, Ada Brea, Claire Redfield, Tifa, Aerith, entre outras, chegaram para dividir o sucesso com a principal personagem da Eidos. Agora não tinha mais volta e as mulheres começaram, agora pra valer, a reivindicar seu lugar no outrora universo masculino.
A partir daí, muito mais jogos foram lançados tendo uma protagonista nas gerações seguintes: Alyx, em Half Life; Ellie, em The Last of Us; Faith, em Mirros Edge; Jade, em Beyond Good and Evil; The Boss, em MGS 3; Cortana, em Halo; Bayonetta, em Bayonetta; entre diversas outras. Apesar da grande quantidade de grandes e inesquecíveis mulheres que foram aparecendo nos games e com os jogos da franquia Tomb Raider cada vez pior, Lara continuava imbatível no posto de principal personagem feminina dos vídeo games.
Sexualizando um ícone
Seja no cinema, teatro, música ou mesmo nos vídeo games, os produtores usaram e abusaram da sexualidade feminina para atrair o publico masculino. Nos games, quanto menos roupa a personagem usasse mais sucesso entre os jogadores faria. E foi assim com a Lara por muitos anos.
A sexualização da Lara se deve principalmente aos seus atributos físicos. Sim, estou falando dos seios da personagem. A Eidos não economizou polígonos ao modelar os seios da personagem. O primeiro jogo trouxe uma Lara Croft toda quadrada, mas na época, isso era o ápice dos gráficos e a personagem fez muito sucesso com a rapaziada ao usar botas, shorts e uma blusa que valorizava ainda mais sua sexualidade.
Nos jogos seguintes, os gráficos foram melhorando e a personagem foi ficando cada vez mais bonita e mais parecida com uma mulher real. Pouca coisa mudava em seus trajes e a sensualidade e a sexualização continuavam agradando o jogador que por muitas vezes fixava o olhar nela e esquecia o restante do jogo. Com a chegada da geração 128 bits, Tomb Raider passou a ter gráficos mais refinados e uma remodelação na personagem. Os trajes continuavam os mesmos e a grande e mais notável diferença era em seus seios, que agora eram maiores, mas agora muito mais reais. As pernas da Lara também ganharam maiores contornos e agora com mais destaques. Lara estava muito mais bonita e muito mais sensual, mas a qualidade de seus jogos já não era a mesma. Tomb Raider Angel of Darkness foi o primeiro jogo lançado para a geração 128 bits e foi um fracasso. Um pouco tempo depois, foram lançados dois jogos: Tomb Raider Legend, que trazia uma Lara com roupas mais curtas, mas com um corpo muito mais definido e Tomb Raider Anniversary, remake do primeiro jogo, que trazia de volta uma Lara com suas roupas originais. Alguns novos jogos foram lançados, mas sem grande sucesso.
Dessexualizando um ícone
A série Tomb Raider fez um sucesso grandioso na geração 32 bits, mas na geração seguinte, foi praticamente um fracasso. A Eidos percebeu que se não houvesse uma drástica mudança na série, ela corria um risco de ser enterrada em definitivo. Após o lançamento de Tomb Raider Underword, o estúdio Crystal Dynamics começou a produzir, em 2008, um novo jogo da série. Mas não numa sequência direta. Eles optaram por um reboot. Ou seja, começaram tudo do zero.
Este reboot chegou em 2013, sendo muito bem recebido pelo público e pela crítica especializada e nos apresentou uma nova jogabilidade, uma história toda reformulada e uma Lara Croft ainda no início de sua carreira de exploradora. Como o jogo foi praticamente todo reformulado, obviamente que a personagem também deveria seguir o novo esquema. A Crystal Dynamics, produtora do jogo, optou por redesenhar totalmente a personagem. Saia a exploradora que se tornou um sexy symbol de uma geração, entrava uma personagem sem qualquer sinal de conteúdo sexualizado. Lara aposentou seus shorts que deixavam suas pernas a mostra e passou a usar calças. Ela continuou usando um top, mas agora seus seios já não eram tão grandes como na personagem principal. A personagem sofria aqui a sua primeira mudança radical desde seu lançamento em 1996.
Com o crescimento do número de mulheres que jogavam vídeo games, era questão de tempo para que as produtoras mudassem seus conceitos em relação às suas personagens. Lara Croft não foi a primeira personagem feminina a ser sexualizada e nem foi a primeira personagem feminina dessexualizada dos vídeo games. Muitas outras personagens, principalmente nos RPG’s, não usavam dos seus atributos sexuais para conquistar mais jogadores. Mas Lara era considerada por muitos jogadores o estereótipo feminino do mundo dos games.
Com o passar dos anos, e o amadurecimento dos nossos pensamentos, vamos mudando nossos conceitos e passamos a ter escolhas diferentes. Com os jogos eletrônicos não é diferente. Personagens sexualizadas continuarão existindo, mas tipos como a nova Lara, Ellie, Alyx Vance, Faith e Jade estarão mais presentes como protagonistas. Personagens que não abusam da sexualização, mas que se aproveitam de sua força para sensualizar sem parecer que estão ali apenas para isso.
A nova Lara continua sensual, mas agora está mais próxima da realidade. Ela continua forte, astuta, guerreira, charmosa e linda, mas sem apelar para shorts curtos e seios exagerados. E, claro, mostrando que é possível arrasar corações sem usar um contexto apelativo.